domingo, 31 de outubro de 2010

Na vulnerabilidade das coisas.

Noite de sábado. Fria. Só. Desinteressante.

Chegou com mais uma ressaca desses sexos mal dormidos de fim de tarde. Procurava em outros corpos o que não tinha mais debaixo dos seus lençóis. Não havia mais o travesseiro babado. O lençol gozado. O livro sobre o criado-mudo paralelo ao seu. Só as fotografias velhas que a fazia doentia de saudade, o cinzeiro quase mofado de madeira, o par de meias azuis intactas no canto do quarto.

Tirou seus Scarpins vermelhos que pareciam sangrar na poeira to tapete velho que rasgava a monotonia da sala. Abriu as cortinas claras que seduziam o lustre com sua dança na brisa silenciosa. Despejou o casaco xadrez contemporâneo por cima das cartas úmidas de lágrimas das noites passadas. Esparramou-se no chão. Frio. Fria.

Na vitrola: Fake Plastic Trees – Radiohead. Olhando para o teto, vagarosamente, ainda tonta com o vinho da esquina vagabunda, ela grita calada: “But I can't help the feeling/ I could blow through the ceiling/ If I just turn and run”. “Mas não posso evitar o sentimento/ Eu explodiria através do teto/ se eu apenas me virasse e corresse.”

Com o seio inchado pelo oco que corre em seu peito, ela tem um pequeno flerte. Necessita de uma outra voz que não seja a sua. Uma sede gritante lhe empurra nessa imaginária calmaria. Alivio falso. Ela torna isso real. Pelo menos no ouvir da voz:

Alice:_Theo? Theo? Te acordei?

Theo:_ São que horas, Alice?

Alice:_ Uma e meia da madrugada.

Theo:_Oh, não acha que é meio tarde para ligar para alguém?

Alice:_Me desculpe, mas precisava falar.

Theo:_Não precisa se desculpar, Môme, não estava dormindo. Você está embriagada, não é?

Alice:_Não, apenas tomei a última garrafa de vinho daquele boteco vagabundo. Não comece, por favor. Não foi pra isso que liguei.

Theo:_Como quiser, continue.

Alice:_Theo, estou triste. Ando chorando muito esses dias. Minha cabeça parece que lateja esse amor que está inacabado me fazendo lembrar o quanto vivemos juntos.

Theo:_Alice, isso não são horas para você falar dessas coisas. Já é um pouco tarde demais pra você querer algo meu. Você é tão independente que vai superar logo, sei disso. Só não posso dizer o mesmo de mim.

Alice:_Então porque você não volta? Faça-me feliz. Entre por esta porta deixando sua chave presa nela para sempre. Quebrando o silencio desses corredores com o seu sapateado. Perturbando os visinhos com nossas loucuras na cama depois da meia noite.

Theo:_O amor é limitado, Môme, e você sabe disso. Uma hora tem que acabar. E a nossa chegou. Ele ainda arranha minhas costas quando vou dormir, mas sei que vai curar. Quando? Eu não sei. A gente nunca sabe.

Alice:_Desejei tanto poder dormir com você. Passaríamos a noite deitado num campo aberto, com a relva cerrada com o verde intenso sussurrando nas minhas orelhas, com o vento calmo para aliviar minhas costas desta carga tão pesada. Um céu estrelado. Uma chuva doce, talvez. Theo, já fui tão amena, agora estou tão medíocre. Sinto-me suja, fétida, nojenta. Estou mal. Não sei o porquê de estar falando essas coisas para você. Sempre detestei essa porra de lamentação. Ficamos tão vulneráveis quando fazemos isso. Mas sinto que hoje gostaria de ter algo além dessas paredes para conversar, sabe?

Theo:_ Môme, você precisa voltar para dentro de si. Você precisa desses esfregões bem dados para arrancar essa sujeira que você trás nos sapatos. Assim você estará melhor. Ver um céu estrelado com a pessoa desejada ou tomar banho doce de chuva não vai resolver nada, e você bem sabe disso. A tarefa é bem mais árdua e cansativa do que parece. Não basta apenas você se enterrar nesse quarto e jogar as cinzas para debaixo do tapete. Estou, não sei como, da mesma forma que você. Entendo perfeitamente.

Alice:_Eu entendo também esse seu refúgio. Lençóis, quadros, discos novos. Mas estamos nos reservando de que? Pra quem? Só não compreendo o motivo dessa hesitação. Será mesmo que depois dessa tempestade, vamos ganhar a calmaria? Hoje não consegui me conter novamente. Explodi dentro dessas memórias. Estava, nesta última hora, chorando com meus conhaques dentro do banheiro velho daquele boteco. Nunca senti tanta necessidade de alguém entrar nessa dor comigo. Assistir a esse espetáculo dramático e derramar essas caladas palavras sentimentais pelo rosto. Estragando minha maquiagem. Sinto tanta a sua falta, sabe? É um momento ruim. Eu colocar pra fora essa agulha que me alfineta a coluna e estremece de tonteira meu crânio. Acho que vou sair novamente para comprar cigarros. Penso que tudo isso é uma merda. Usar as pessoas para ouvirem seus lamentos.

Theo:_Não, continue. Você sabe que não me importo. Oh, só um minuto....Tudo bem, pode continuar.

Alice:_Não, tudo bem. O que estavas fazendo acordado tão tarde?

Theo:_Por incrível que pareça, estava arrumando o apartamento. Acho que darei amanhã um jantar e quero mudar os móveis do lugar.

Alice:_Sempre atrapalho e arrumo as vidas das pessoas. Você nunca arrumou nem se quer seus livros e discos na mesinha da sala. Mas não tem problema, querido. Pode ir. Arrume essa casa bem bonita. Coloque flores nos vasos, pendure seus desenhos mais belos nas paredes, tire a poeira debaixo do tapete e perfume todo o resto. Espero encontrar nossas vidas como esta casa planejada por você no momento. Organizada, perfumada e calma. Beijos. Vou me sentir melhor, temporariamente, dormindo.

Theo:_Você não vem?

Chamada encerrada!



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