domingo, 25 de abril de 2010

Lição para casa: hipocrisia e caridade teórica.


Parecia que ontem o tempo tinha me encaminhado para andar com mais frio. Não sei explicar ao certo, mas eu estava com as sensações explícitas na pele, nos olhos, na voz. E isso tudo só resultou em lágrimas. Não de tristeza, nem muito menos de alegria, mas lágrimas incoerentes que queriam me borrar as maçãs do rosto na frente de todos que não iam entender minha visão, agora manchada e embaçada.

Depois de uma manhã monótona no curso que eu tanto me maltrato por ter escolhido um caminho errado. Depois de uma tarde intensa e tensa no trabalho que me tira do sério por ver as horas estagnadas no relógio de pulso, retornei a minha rotina noturna com o cansaço nos olhos. Sentei-me em um muro em frente ao colégio depois de ter me entregado a idéia de não assistir as últimas três aulas. Havia um grupo de carinhas chatos ao lado que brincava com um filho de outra menina. Era detestável o jeito deles se divertirem com uma criança que parecia estar negligenciada pela mãe. Havia motos paradas perto da calçada que me mostravam mais uma vez minha condição de falta de dinheiro, quando todos iam de carona com amigos ou com suas respectivas motorizadas e eu tinha de esperar o ônibus que sempre vinha cheio de pessoas desinteressadas e desinteressantes. Havia pernas passando pelas ruas. Havia risos irônicos rasgando o silêncio que eu tentava preservar. Havia fumaça saindo dos carburadores de carros. Havia lixo. Nas bocas. Nas mentes. Nas calçadas.

E houve o momento.

Houve por um instante, quando o homem com olhos lânguidos se abaixou e recolheu os dejetos no canto do encostamento. Olhos nos olhos. Aquela fração de segundos que passamos olhando para alguém tentando ver algo além do físico. Ele se levantou constrangido e foi embora. Não sei que percebeu, mas naquela hora quebrada para mim, pude invadir seu íntimo e questionar uma vida inteira. Sei que faltei com a educação quando invadi o espaço dos outros. Foi involuntário e não pude deixar de olhar bem fundo naqueles olhos quase mortos.

Algo me martelou a noite inteira e bateu com minha cara na parede me fazendo perguntar algo para o meu dentro: “Quais seriam os sonhos, as dores, os medos, as vontades daquele homem?”

Pode parecer muito clichê dar uma de revolucionário, sensível e solidário, mas algo profundo me fez viver como o homem triste. Penetrei no seu interior e pude me deixar levar com os seus amores, com seus ideais, com seus sonhos, com sua vida que parecia não estar bem. E ele, não percebendo, me permitiu enxergar o que faltava na minha visão além das motos, dos carinhas, da fumaça.

O homem era comum. Moreno, magro, olhos escuros. Não, óbvio que não. O homem era totalmente diferente. Pele negra marcada pelo trabalho ou pela vida, magro de não ter o que comer, talvez, olhos com uma cor mórbida que gritava uma situação ruim. Faltava condição para aquele pobre viver com mais dignidade. Faltava mais espaço para seus sonhos. Faltavam mais ombros e abraços para encorajá-lo a esquecer suas dores e seus medos. Faltava mais estímulo para realizar suas vontades.

Então me deixou no desejo de gritar para o mundo que ele existia. Porque eu não o fiz? Fui totalmente incoerente. Consegui ver uma cena que um alguém se entregava a sua condição, no caso, a sua miséria e não pude fazer nada para ajudá-lo. Não é minha obrigação diminuir suas necessidades, disso eu tenho certeza, mas quis e queria manter algo que sempre saía da minha boca. Me senti preso a minha hipocrisia de dizer que queria contribuir de maneira boa na vida de um morador de rua ou qualquer pessoa que estaria passando fome ou qualquer outro tipo de necessidade, e não ter feito nada. Imaginei o quanto aquele homem já passou para estar ali, recolhendo o lixo para sua sobrevivência. Imaginei o quanto ele apanhou na vida pra levar um pedaço de pão para sua mulher e crianças. Isso se ele conseguiu ter uma família.

Então uma coisa subiu pelo meu pescoço que estava engasgado com um choro e atingiu meus pensamentos. Uma náusea. Uma dor anormal. Tocava a música dos restos jogados num saco de plástico dentro da minha cabeça. A canção não era boa e não tinha harmonia. Um frio causado não só pelo tempo me deixou indignado com as palavras que eu jogava ao vento. Solidariedade teórica. Pura hipocrisia. Esse tempo todo eu menti em dizer tamanhas ações de bondade. Menti quando disse que existiam preocupações com o próximo. Com uma criança no meio da calçada me pedindo um pedaço do meu lanche. Com um senhor que caiu no meio da rua por desequilíbrio.

Logo eu que sempre briguei pela opção de morrer ajudando alguém. Logo eu que queria crescer, me tornar um homem corajoso e ter perto da minha residência uma casa abrigo para moradores de praças, pontes e calçadas. Logo eu que passava pelas mesmas ruas indo para a escola e deixava meu pacote de biscoito cair no chão, perto de uma família jogada na podridão da minha antiga cidade sem que minha mãe percebesse. Logo eu que queria abraçar o mundo. Logo eu que vivi na teoria, me queixo e me maltrato. Deixo-me resultar em ser um alguém perdido entre tantas palavras dúbias presas em um texto cheio de mentiras e falsos ideais e caridades camufladas!

Júnior!

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